

Em cada adepto há um aspirante a treinador. E eu não sou exceção. Joguei muitos anos futebol federado, mas nunca tive a qualidade necessária para que pudesse fazer disso vida. Porque como é óbvio, quem quereria ser economista se pudesse ser jogador de futebol? Não obstante, hoje vou fazer a vontade ao corpo e fazer de treinador de bancada. E isto a propósito de um tema que me tem irritado solenemente no futebol “moderno”.
Num dos muitos grupos de whatsapp de que faço parte, tive recentemente uma afirmação que causou consternação. Que o Barcelona de Guardiola foi a pior coisa que aconteceu ao futebol. O que fez no Barcelona com Messi e o resto da La Masia foi provavelmente a maior inovação que vi no futebol desde que nasci. Transformou o futebol ao ponto de se poder hoje olhar para um jogo e se perceber claramente pela maneira como se joga se foi ABG ou DBG (Antes do Barcelona do Guardiola ou Depois do Barcelona do Guardiola). Uma obsessão pela posse. Saída controlada desde a linha mais recuada. Progressão controlada. Uma apetência natural pelo desequilíbrio na faixa central do terreno.
Nunca mais me vou esquecer de um Benfica vs. Barcelona para a Champions, em que perdemos 2-0 contra esse Barcelona que já era de Tito Vilanova mas ainda tresandava a Guardiola. Foi um jogo horrível. O Barcelona trocou a bola 1.095 vezes, contra 375 do Benfica, com 93 e 71% de sucesso nesses passes, respetivamente. Não queiram saber como foram as percentagens de posse de bola… Mas não foi apenas horrível enquanto adepto do Benfica. A sentir uma impotência absurda da nossa equipa. Foi horrível enquanto adepto de futebol. Bem sei que é subjetivo, mas ver um futebol em que 90% do tempo foi jogar à rabia é exasperante. Acredito que um adepto do Barcelona tenha visto as coisas de forma diferente, claro…
Mas porque digo eu que o Barcelona de Guardiola foi a pior coisa que aconteceu ao futebol? Porque criou algo tão eficaz, tão diferente, tão esmagadoramente superior, que muitos acreditaram que seria assim o futebol do futuro. E em alguns aspetos têm razão. Como disse atrás, há um futebol antes e depois do Barcelona do Guardiola e nota-se a sua influência em qualquer jogo de hoje em dia. Mas o que acredito que muito poucos tenham percebido, é que esse Barcelona apenas foi possível com base num grupo alargado de jogadores que estiveram juntos desde miúdos. Que jogavam juntos há anos desde os iniciados. Que uma constelação de talento daquele calibre numa mesma geração, num mesmo clube, é algo que acontece uma vez. E que sem isso, não é possível atingir a eficácia do tiki-taka original.
Que o digam os media espanhóis, que já fazem títulos nos jornais a questionarem o tiki-taka. A lembrarem que após a geração de Xavi e Iniesta em 2010, não voltaram a passar dos oitavos de final do campeonato do mundo. Que contra Marrocos tiveram 77% de posse de bola, mas sem qualquer consequência. Posse de bola ad nauseaum sustentada por jogadores que tipicamente jogam e tem apetência por zonas centrais do terreno, e que tentam desequilibrar, apenas coletivamente, precisamente por aí (um meio-campo com Otávio, Ruben Neves, Bernardo Silva e Bruno Fernandes, com João Félix mais adiantado diz-vos alguma coisa?). Equipas ditas inferiores, tudo o que têm de fazer é desistir da luta pela posse, popular o centro do terreno, jogar com linhas baixas e sempre com pelo menos 10 jogadores atrás da linha da bola, e esperar. Esperar que essa posse controlada a tentar desequilibrar sucessivamente pela zona do terreno mais povoada, bata na parede que são os quatro médios na zona central e os três centrais na zona média da defesa e depois sair em transição rápida.
Acredito que mesmo para os jogadores, depois de tentarem pela centésima vez trocar a bola e entrar por uma zona do terreno onde estão pelo menos sete jogadores adversários numa caixa de 100 metros quadrados, perderem a bola e terem de correr para trás atrás do adversário seja uma tortura mental que rebenta com qualquer um. À medida que o cansaço mental se acumula, acumulam-se também os contra-ataques perigosos dos adversários. Marrocos contra a Espanha conseguiu levar o jogo para os penalties. Contra Portugal, nem disso precisou. Em ambos os jogos, Marrocos logrou ter apenas 23 e 27% da posse de bola, respetivamente.
Contra adversários como Marrocos, a melhor prenda que lhes podemos dar é precisamente abdicar de esticar o jogo a toda a largura do campo, para criar espaços onde os jogadores com superior qualidade técnica podem desequilibrar. É jogar sem individualidades que consigam desequilibrar no um para um e dê profundidade e velocidade ao jogo. É jogar sem um plano B organizado, em que um estilo de jogo mais direto com competência no jogo aéreo ofensivo pode criar desequilíbrios e segundas bolas que proporcionem ocasiões flagrantes de golo. Tudo isto eu vi na seleção e vi amiúde no Benfica da segunda geração de Jorge Jesus, com discursos de vitórias morais nas conferências de imprensa, baseados em posses de bola esmagadoras e não sei quantos passes seguidos. E tudo isto é algo que eu espero não voltar a ver. Porque a posse de bola deve ser sempre um meio, e não um fim em si mesmo.











Guilherme Almeida
Percebo a ideia do artigo, mas na minha opinião mesmo para Portugal neste mundial ou para JJ na segunda passagem pelo Benfica "com as vitórias morais" a posse de bola acaba sempre por ser um meio e não apenas um fim. É factual que quanto mais tempo a equipa tem posse de bola menos hipóteses o adversário tem de chegar à baliza adversária. Ok, Portugal e Espanha foram eliminados por Marrocos e isso sustenta muito do artigo dado que pode criar a ilusão que foi uma estratégia que assentou perfeitamente aos Marroquinos mas ao mesmo tempo Marrocos também ganhou à Belgica, empatou com a semi-finalista Croácia na fase de grupos e criou muito perigo (muito mais do que contra Portugal) contra a França (apesar de conceder que Marrocos teve de se soltar mais nesse jogo por terem sofrido o golo cedo), tudo isto equipas que não se destacam de todo pela hipotética estratégia de usar a posse de bola como um fim e com apetência natural pelo desiquilíbrio pelo centro do terreno. Uso isto para demonstrar que Marrocos seria sempre um adversário perigoso, se calhar se Portugal usasse uma estratégia como a França provavelmente poderíamos ter perdido o jogo doutra maneira e não apenas teríamos perdido o jogo por um erro do nosso guarda-redes (na verdade foi isto que aconteceu). Ok, a Espanha não passa os oitavos de final desde 2010, mas também tinha passado quantas vezes antes da geração Guardiola? A Espanha não é tendencialmente uma seleção de topo europeia e mesmo assim no último europeu, com uma geração claramente inferior à anterior e com talento ofensivo claramente abaixo de várias seleções europeias, apenas caiu nas meias-finais em pénaltis frente ao campeão em título e neste mundial noutro contexto também poderia ter facilmente chegado às meias-finais (também relembrar que esta mesma Espanha há uns meses eliminou Portugal na Liga das Nações, num jogo em que Portugal não jogou com esta estratégia de posse de bola assente em muito jogo interior com a profundidade dada aos laterais, mas sim com um jogo mais pragmático) Percebo a frustração da posse de bola elevada e sem perigo mas se olharmos, do ponto de vista de um treinador, é uma estratégia efetiva e que minimiza os estragos que o adversário pode causar. Além disso, não é uma estratégia de sucesso exclusiva ao Barça de Guardiola e que apenas funcionou num grupo de rapazes que se conheciam desde pequenos a jogar sempre uns com os outros, podemos olhar para o atual Manchester City (provavelmente a melhor equipa do mundo nos últimos anos) e observar isso, mas também em menor escala temos inúmeros casos de sucesso, nem que seja o Bielsa no Championship, a transição do futebol de Klopp no Liverpool (claramente diferente dos tempos iniciais) ou até a nível nacional pela primeira passagem do Jorge Jesus pelo Benfica. As equipas que dão primazia a ter mais posse de bola vão estar sempre mais perto de ganhar. Posto isto, concordo claramente com a necessidade da existência de planos B para estas estratégias (Espanha contra Marrocos por exemplo lançou o Nico Williams, um extremo desequilibrador, e a entrada dele mudou claramente o jogo, algo que não se sucedeu com Portugal mesmo com a entrada do Leão) e também concordo com a ideia de que para o espectador este estilo de jogo também acaba por ser pior (também tive nesse Benfica Barcelona e saí de lá com sono), mas esta ideia de ser pior para o espectador acaba por estar diretamente correlacionada com ser uma estratégia mais efetiva para uma das equipas, dado que quase asfixia a equipa adversária e reduz os seus momentos de protagonismo, criando um jogo mais monótono e menos espetacular.
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