Pedro Brinca
Biografiado Autor

24 Dez 2022 | 18:45

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Pedro Brinca

Contra adversários como Marrocos, a melhor prenda que lhes podemos dar é precisamente abdicar de esticar o jogo a toda a largura do campo.

Em cada adepto há um aspirante a treinador. E eu não sou exceção. Joguei muitos anos futebol federado, mas nunca tive a qualidade necessária para que pudesse fazer disso vida. Porque como é óbvio, quem quereria ser economista se pudesse ser jogador de futebol? Não obstante, hoje vou fazer a vontade ao corpo e fazer de treinador de bancada. E isto a propósito de um tema que me tem irritado solenemente no futebol “moderno”.


Num dos muitos grupos de whatsapp de que faço parte, tive recentemente uma afirmação que causou consternação. Que o Barcelona de Guardiola foi a pior coisa que aconteceu ao futebol. O que fez no Barcelona com Messi e o resto da La Masia foi provavelmente a maior inovação que vi no futebol desde que nasci. Transformou o futebol ao ponto de se poder hoje olhar para um jogo e se perceber claramente pela maneira como se joga se foi ABG ou DBG (Antes do Barcelona do Guardiola ou Depois do Barcelona do Guardiola). Uma obsessão pela posse. Saída controlada desde a linha mais recuada. Progressão controlada. Uma apetência natural pelo desequilíbrio na faixa central do terreno.

Nunca mais me vou esquecer de um Benfica vs. Barcelona para a Champions, em que perdemos 2-0 contra esse Barcelona que já era de Tito Vilanova mas ainda tresandava a Guardiola. Foi um jogo horrível. O Barcelona trocou a bola 1.095 vezes, contra 375 do Benfica, com 93 e 71% de sucesso nesses passes, respetivamente. Não queiram saber como foram as percentagens de posse de bola... Mas não foi apenas horrível enquanto adepto do Benfica. A sentir uma impotência absurda da nossa equipa. Foi horrível enquanto adepto de futebol. Bem sei que é subjetivo, mas ver um futebol em que 90% do tempo foi jogar à rabia é exasperante. Acredito que um adepto do Barcelona tenha visto as coisas de forma diferente, claro...


Mas porque digo eu que o Barcelona de Guardiola foi a pior coisa que aconteceu ao futebol? Porque criou algo tão eficaz, tão diferente, tão esmagadoramente superior, que muitos acreditaram que seria assim o futebol do futuro. E em alguns aspetos têm razão. Como disse atrás, há um futebol antes e depois do Barcelona do Guardiola e nota-se a sua influência em qualquer jogo de hoje em dia. Mas o que acredito que muito poucos tenham percebido, é que esse Barcelona apenas foi possível com base num grupo alargado de jogadores que estiveram juntos desde miúdos. Que jogavam juntos há anos desde os iniciados. Que uma constelação de talento daquele calibre numa mesma geração, num mesmo clube, é algo que acontece uma vez. E que sem isso, não é possível atingir a eficácia do tiki-taka original.

Que o digam os media espanhóis, que já fazem títulos nos jornais a questionarem o tiki-taka. A lembrarem que após a geração de Xavi e Iniesta em 2010, não voltaram a passar dos oitavos de final do campeonato do mundo. Que contra Marrocos tiveram 77% de posse de bola, mas sem qualquer consequência. Posse de bola ad nauseaum sustentada por jogadores que tipicamente jogam e tem apetência por zonas centrais do terreno, e que tentam desequilibrar, apenas coletivamente, precisamente por aí (um meio-campo com Otávio, Ruben Neves, Bernardo Silva e Bruno Fernandes, com João Félix mais adiantado diz-vos alguma coisa?). Equipas ditas inferiores, tudo o que têm de fazer é desistir da luta pela posse, popular o centro do terreno, jogar com linhas baixas e sempre com pelo menos 10 jogadores atrás da linha da bola, e esperar. Esperar que essa posse controlada a tentar desequilibrar sucessivamente pela zona do terreno mais povoada, bata na parede que são os quatro médios na zona central e os três centrais na zona média da defesa e depois sair em transição rápida.


Acredito que mesmo para os jogadores, depois de tentarem pela centésima vez trocar a bola e entrar por uma zona do terreno onde estão pelo menos sete jogadores adversários numa caixa de 100 metros quadrados, perderem a bola e terem de correr para trás atrás do adversário seja uma tortura mental que rebenta com qualquer um. À medida que o cansaço mental se acumula, acumulam-se também os contra-ataques perigosos dos adversários. Marrocos contra a Espanha conseguiu levar o jogo para os penalties. Contra Portugal, nem disso precisou. Em ambos os jogos, Marrocos logrou ter apenas 23 e 27% da posse de bola, respetivamente.

Contra adversários como Marrocos, a melhor prenda que lhes podemos dar é precisamente abdicar de esticar o jogo a toda a largura do campo, para criar espaços onde os jogadores com superior qualidade técnica podem desequilibrar. É jogar sem individualidades que consigam desequilibrar no um para um e dê profundidade e velocidade ao jogo. É jogar sem um plano B organizado, em que um estilo de jogo mais direto com competência no jogo aéreo ofensivo pode criar desequilíbrios e segundas bolas que proporcionem ocasiões flagrantes de golo. Tudo isto eu vi na seleção e vi amiúde no Benfica da segunda geração de Jorge Jesus, com discursos de vitórias morais nas conferências de imprensa, baseados em posses de bola esmagadoras e não sei quantos passes seguidos. E tudo isto é algo que eu espero não voltar a ver. Porque a posse de bola deve ser sempre um meio, e não um fim em si mesmo.

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